A recente aprovação, na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que propõe o fim da reeleição para os cargos do Poder Executivo, presidente da República, governadores e prefeitos, e a instituição de um mandato único de cinco anos, reabre uma discussão recorrente sobre os ciclos de poder no Brasil. Embora a proposta, em tese, contenha méritos conceituais, ela carrega consigo um vício comum no processo legislativo brasileiro, o das reformas parciais, descoladas da lógica sistêmica do ordenamento político, cujos efeitos concretos tendem mais à desorganização do que à estabilidade.
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O ordenamento político brasileiro, entendido como o conjunto de normas constitucionais, instituições, práticas de governabilidade, é um sistema de interdependência. Toda tentativa de reforma que desconsidera esse entrelaçamento corre o risco de produzir efeitos colaterais negativos. A adoção de um mandato único, isoladamente, sem reforma do sistema partidário e dos mecanismos de governabilidade, por exemplo, não encontra base de sustentação institucional.
Em um presidencialismo de coalizão com forte fragmentação partidária, grande necessidade de articulação e baixa responsabilização, o tempo político se torna um ativo escasso e essencial. Reduzir esse tempo, sem reestruturar o jogo, é um erro de organização institucional. Historicamente, o Brasil já operou sob o regime de mandato único de cinco anos.
A Constituição de 1988 instituiu essa configuração, vigente até 1997. Foi naquele ano, sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, que o país aprovou a Emenda Constitucional nº 16, permitindo a reeleição para os cargos do Executivo. A mudança não foi acidental nem desinteressada: visava garantir previsibilidade política e continuidade administrativa, sobretudo em um contexto de consolidação da estabilidade econômica na implantação do Plano Real.
A experiência anterior mostrava que um único mandato era insuficiente para a maturação de políticas públicas consistentes e criava estímulos perversos, como o populismo fiscal e o uso eleitoreiro da máquina nos anos finais de governo. Retomar hoje o modelo de mandato único, sem alterar as demais peças do sistema, representa um retorno desestruturado a um passado que já demonstrou suas limitações.
O Executivo eleito sob a regra do mandato único terá, desde o primeiro dia, um incentivo natural à política de curtíssimo prazo. A ausência de expectativa de reeleição reduz o compromisso com políticas de médio e longo prazo e amplia o foco na visibilidade imediata, na autopromoção e na gestão simbólica. Em termos de racionalidade política, substitui-se o projeto de Estado pelo espetáculo de governo.
Do ponto de vista procedimental, é importante destacar que a proposta ainda se encontra em estágio preliminar. A aprovação na CCJ do Senado representa apenas a primeira etapa. A PEC ainda precisa ser votada em dois turnos no plenário do Senado e, posteriormente, também em dois turnos na Câmara dos Deputados. Mesmo que venha a ser aprovada, seus efeitos não seriam imediatos. A medida não impactaria as eleições de 2026, produzindo efeitos apenas a partir de 2028.
Mais relevante do que a discussão sobre a reeleição em si é o padrão institucional que essa proposta revela. A persistência de uma cultura política que evita diagnósticos estruturais e prefere operar por meio de correções tópicas, fragmentadas, frequentemente populistas no discurso e inconsequentes na prática. Em vez de reformas amplas, articuladas e coerentes, o país opta por modificações pontuais que criam assimetrias e distorções.
O resultado é um ordenamento cada vez mais instável, funcionalmente incoerente e politicamente dissonante. No limite, essa proposta explicita uma crise mais profunda, a falta de confiança na política brasileira. A velha política, identificada com os vícios do clientelismo, do fisiologismo e da perpetuação de interesses oligárquicos, perdeu sua legitimidade social.
Contudo, a chamada nova política ainda não conseguiu se consolidar como alternativa concreta, carece de forma, método, projeto e densidade institucional. O resultado é um vácuo representativo. Essa PEC é, nesse sentido, uma tentativa institucional de responder ao descrédito popular. Representa menos uma convicção reformista e mais uma reação ao esgotamento da confiança social nas estruturas vigentes. Contudo, não resolve o problema. Apenas desloca o foco e simula ação. É o sintoma de um sistema que evita se reformar, mas precisa parecer que está se reformando.
Caleb Bentes Dias – Cientista Político
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